Você ainda escreve cartas?
Mas houve um tempo em que as cartas
possuíam um ritual de produção e atenção. Lembram-se dos envelopes que continham
perfume? Pois é... novos tempos. Mas e agora?
As formas de escrita sempre encontraram diferentes suportes e as cartas tal como os diários, representam uma forma de escrita ordinária onde imprime-se com o que se sente.
A
relação com a escrita neste caso específico é uma relação tátil e de afetos.
Sob esta ótica, era ritualística e envolvia um tempo cíclico composto de
começo, meio e fim. Exigia uma composição que ia desde a escolha do tipo
do papel, a tinta, o cunhar as palavras de próprio punho, a busca de um
envelope que não alterasse a forma de dobras e, óbvio: filas nos correios,
compra de selos, o uso das colas e finalmente o encontro com uma caixa que
servisse de fiel depositária até que esta encontrasse seu destinatário.
O recebedor da carta inspecionava quem lhe havia remetido, de onde, em que data e há quanto tempo ela viajava ao seu
encontro. A leitura seguia sempre a busca de um melhor lugar. Era lida, relida
e muitas vezes guardada afetuosamente entre os principais valores pessoais de
cada um. Algumas continham o perfume dos papéis e até objetos que eram-lhes
acessórios (pétalas, desenhos, e outros objetos que teciam com a carta os seus
sentidos). A resposta quase nunca imediata necessitava do tempo da
elaboração. Era preciso buscar todos os utensílios da escrita para além das
palavras que expressavam de fato o sentido ao dito.
A escrita em traços duráveis e em espaço íntimo trafegava por espaços públicos, de mão em mão, de pessoa em pessoa até o seu destinatário.
De
fato uma grande elaboração!
Como historiadora, todo este trânsito é
fascinante e passível de muitas “leituras”. São modos de viver, pensar e produzir
culturalmente modos de estar.
Hoje, em tempos de tanta imediaticidade e consumo, tudo passa muito rápido, com economia silábica e fonética. As palavras deixam de ser pensadas e as correspondências giram em torno do imediato. Roubou-se a aura da palavra cunhada e da magia que seus complementos tinham (os selos, os papéis, os timbres, as tintas, o rebuscado de letras e formas, sua sinuosidade e curvas).
Hoje, em tempos de tanta imediaticidade e consumo, tudo passa muito rápido, com economia silábica e fonética. As palavras deixam de ser pensadas e as correspondências giram em torno do imediato. Roubou-se a aura da palavra cunhada e da magia que seus complementos tinham (os selos, os papéis, os timbres, as tintas, o rebuscado de letras e formas, sua sinuosidade e curvas).
Escrevi muitas cartas (imagine o
trabalho que tive pelo tanto que sou prolixa!!!), recebi muitas e experimentei
o prazer de estar longe do Brasil e aguardar ansiosa que alguma me chegasse.
Já tive nas mãos cartas escritas por pessoas que morreram há
séculos e tenho que dizer que é uma emoção ver ali a tinta impressa com a
energia dos punhos de alguém como, por exemplo, Mário de Andrade. A forma
como a caneta tinteiro modifica seus tons e como o papel vai ganhando um tom
sépia.
Talvez esse saudosismo tenha a ver com a minha pratica profissional e com minha experiência de vida. A adaptação houve. mas ainda tenho muito vincada em mim a experiência da escrita de próprio punho.
Os
tempos hoje são outros:
Desaparecimentos e perdas são usuais e muitas
vezes temos a ingrata surpresa de descobrirmos que nossos conteúdos digitais
foram para além das nuvens.
Obsolescências, superficialidades... pressa.
São muitos os males que atingem nossas comunicações. Como
disse, a relação é tátil e sensorial própria de um tempo que talvez tenha
passado. Para nós, homens e mulheres de um tempo de transição, é às vezes difícil
verificar como tudo passou tão rápido por nós.
Apesar
de tudo, tento pensar que a qualidade dos textos se preserva e que apenas os
suportes se alteraram. Mas infelizmente todo o código social e cultural em
torno dessas produções se alterou para sempre. O tempo dirá com quais
resultados. Acho que o principal componente de todo este
ritual de sensibilidades e cuidado era exatamente o tempo e atenção dispensada
ao seu preparo.
Você poderia perceber a atenção em cada
detalhe material: o papel escolhido e sua textura, a tinta enquanto espessura e
cor, letras trêmulas ou incisivas, as formas de dobra e até o tipo de envelope. Tudo denotava cuidado, esmero, atenção e principalmente um dos recursos mais escassos que temos: tempo.
Hoje, a volatilidade é grande. Com os meios digitais apascentou-se o espírito ansioso. Mas, e todo o "conjunto da obra"? Como referir a emoção que às vezes tínhamos quando víamos o carteiro? Lembro-me de ter corrido atrás deles algumas vezes com receio de que minha carta não chegasse.
Bons tempos...
Como falar disso a um natodigital?! Eles de
fato não saberão, infelizmente, o é isso.
Acho que uma amarração fantástica para este tema sejam os filmes "O carteiro e o Poeta" (que você pode assistir aqui) e "Central do Brasil" (que você pode assistir aqui). O sentido das cartas que tecem vida é uma deliciosa lembrança e uma forma
belíssima da ficção encontrar a escrita.
Estamos no mundo atual vendo a conformação de uma nova relação com as formas de escrita, seus suportes e os modos pelos quais nos relacionamos com nossas correspondências ordinárias. É um patamar de mudança cultural, e por isso é tão afeito aos nossos esquemas sensoriais. E por ser sensorial, imprime em nós muitas emoções e sensações. Não há nada de errado em uma forma ou outra. O que de fato importa é que a comunicação se estabeleça. Óbvio está que se vier com mais elementos que alimentem o sensorial, melhor! Anteriormente tínhamos todo um conjunto de códigos de posturas, que davam uma forte dimensão de "valor" ao que imprimíamos em tinta: era uma escrita de próprio punho com as inconstâncias e oscilações do que nos vinha pela alma. Hoje a escrita padronizada e eletrônica tira isso e muitas outras coisas... mas é uma passagem, e como tal precisa ser trilhada...
A experiência da escrita, interlocução e troca é uma das grandes aliadas no alargamento do espírito. Nos oferecem olhares que de onde estamos não enxergamos. Por isso, o tempo despendido em cada comentário, em cada correspondência tem valor agregado que não possui cifras, é intangível.
O tempo da vida e as palavras que as nomeiam dão formas ao sentido e ao vivido pensado. Nominar é, em última instância, “trazer à existência”. São com as palavras que expressamos ideias, sentimentos, projetos, sonhos, expectativas, reflexões, tecemos críticas e construímos pontes entre o sensível e o visível. Tudo isso as tintas fazem por nós. De punho
ou em um jato de tinta contam ânimos e prismas de mundo. Com elas construímos e partilhamos o saber e o conhecimento. Construímos mundos...
Nas cartas havia todo o conjunto de sentidos que partiam junto com os escritos e daí talvez toda a sua magia. Eram remetidos com elas pedaços de nossas existências compostas, muitas vezes, com folhas secas, pétalas, fotografias, bilhetes de ingresso de lugares incríveis e até beijo feito em batom! Elas são de fato auxiliares sensoriais por onde nossas memórias encontram as vias de acesso ao passado.
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Cartas só, não! Romances inteiros.
ResponderExcluirStephen King escreve a Waterman seus romances (desde Dreamcatcher, logo após o acidente). Como ele mesmo diz: "canetas tinteiro te fazem pensar bem a próxima palavra, antes de escrevê-la".
Acredito que culpar o imediatismo de resposta da tecnologia só não é mais suficiente. Haja visto que não aumentamos nossa velocidade -ou acurácia- de digitação. Ainda se usam dois ou três dedos. Poucos chegam às velocidades conseguidas pelas secretárias dos anos 40~50, que digitavam o dia todo, todos os dias, em máquinas de escrever mecânicas. Não há mais cursos de digitação, assim como faz muito mais tempo acabaram com os cursos de caligrafia. Quando criança, ambos eram matérias do currículo dos Jesuítas.
Hoje, contudo, o mais tátil que chegaremos ao produto do nosso teclar será a ponta do dedo encostando levemente numa tela Touch-Screen como nos tablets. Graças a Deus eliminaram os movimentos cabalísticos que tentaram implementar quando lançaram as primeiras telas sensíveis. Verdadeiros delírios de estenografia tresloucada!
Abs
LionelC
1521
Ol@ Lionel...
ExcluirAcho sim que toda essa instantaneidade nos retira desse processo de composição da carta. Em geral ela tem que ser rascunhada e passada à limpo e até postá-la vc tem muitos momentos para se "arrepender". Hj, infelizmente, qtas vezes mandamos algo que depois pensamos que deveria ter ficado conosco. Tudo há mesmo um preço!
Vivi anos de minha vida fora do Brasil..E é engraçado como muitos lugares me inspiraram escritas de cartas e postais: ia ao lugar e era tomada pelo desejo de compartilhar e lá iam páginas escritas para algum desavisado "companheiro de trilhas".
Abs
A gente ama escrever cartas, sabores e flores. Dores e amores.
ResponderExcluirConheça nosso projeto e venha fazer parte!
www.amoremcartas.com.br ;)
Beijos
hoje comprei tinta Pelikan violeta para escrever cartas, coisa que não faço desde faz uns quatro anos... caneta-tinteiro e papel especial... depois de ler, escrever é algo que me faz feliz.
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