Infância roubada

Por: Eliana Rezende

Roubam-se infâncias. Expropriam-se direitos e vidas.
Do lado de fora, guerra e ruínas, pouco para comer, trapos para vestir, feridas para cuidar. Janelas sem vidros, paredes cobertas de mofo. Para aquecer-se apenas o calor de outros corpos. Pés descalços e desolação ao largo. Caminhos estilhaçados feitos de abandonos, pedras e entulhos.
Não há para onde voltar e nem para onde ir.
Tanta agrura sob luzes e sombras... 

Cenários de desolação, fome, morte, doenças e condições desumanas. A guerra retira de todos sua dignidade e vontade. Instala apenas o básico da luta pela sobrevivência, nem que esta, ao invés de pautar-se na solidariedade, paute-se na luta contra o próximo. Luta entre desiguais. Sempre...

Pauperismo físico, mental, emocional... Almas carentes e em agonia de ser e estar.


Mas se não estão em campos de refugiados ou áreas de guerra, encontram-se em campos de carvão, minas, oficinas, lavouras... onde suas mãos miúdas tecem, quebram, queimam migalhas que garantem a manutenção apenas diária. Cobrem-se de terra, lama, poeira, cinza, graxa. Consomem-se ante o calor escaldante, gélidas temperaturas ou chuvas torrenciais.

O asfalto os planta em cruzamentos de espaços urbanos, onde bolas, balas e malabares tornam-se moeda de troca para engrossar formas de expropriação das pequenas somas obtidas no decurso dos dias.

Há ainda o próprio corpo: destituído, expropriado, prostituído. Possuído à força, pela vilania ou simplesmente pelo prazer do sofrimento do mais fraco. Não necessariamente vem do desconhecido e distante. Pode morar sob o mesmo teto. Pode ter nas veias o mesmo sangue. De novo luta entre desiguais.

Sem solidariedades, encontram no silêncio armas contra si vindas de iguais veias. Muitos tem nos progenitores as figuras de cúmplices coniventes.  


A exploração infantil tem assim muitas faces. Mas há também outras formas de abandono!
Aquelas onde não há o cuidado dos limites. Dos nãos. Onde o excesso material é fornecido para compensar ausências e carências emocionais e de filiação. Deixados a sós e cuidados por suas babás eletrônicas descobrem cedo que seu poder de barganha é dado pelo que conseguem consumir.

Consumir se transforma no objetivo único e propósito de suas vidas. As relações passam a ser medidas apenas pelo que se possui. Pequenos e cruéis ditadores nas suas relações com os mais velhos e ausentes. Ausências feitas não apenas de presença física, mas de sentidos morais, éticos e de valores.


Tiram-se de existências tempos... da infância, da inocência, da alegria e leveza, do brincar!
Sequestros de chances e de possibilidades.

Para onde ir? Com que tintas mudar as cores desta paleta?
Onde está o sonho roubado? Por qual janela voou?
Provavelmente no próximo sorriso que nasce, na vida que brota em meio as pedras, nos raios da luz pálida de um dia dourado de outono, nas solidariedades tecidas por vidas que se cruzam e compatibilizam...


Ou...
Na vida que se deixa voar e liberta-se!



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Comentários

  1. Belissimo texto Eliane Rezende, você conseguiu extrair a essência em meio a guerra e pela luta pela sobrevivência de pequenos seres que nada tem a ver com aquilo, mas que infelizmente estão vivendo no meio de tudo aquilo.
    Um forte abraço. Parabéns.

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  2. Ol@ Paula...
    Aqui está um post do qual não consegui fazer fileira com aquelas frases prontas de que no sorriso de uma criança se encontra o futuro.
    Fui tomada de uma tristeza infinita ao escrever e não consegui ver solução para o que apontei.
    Sei que não mudo nada, mas tento ser uma voz dissonante na multidão para fazer pensar!
    Abs

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  3. Olá Eliana, compartilho contigo desta tristeza e indignação. Trabalhei em uma ONG cuja temática e trato envolvia esta infância abandonada. Sabe o que me alentou de certe forma, saber que existem sim pessoas e instituições ( não falo em governos) que se importam; que sabem como você, que não vão mudar situações tão caóticas e desesperadoras como estas criadas por guerras e descaso da noite para o dia. Que podem sim, com atitudes ainda que pequenas diante deste caos instalado, mudar a vida de uma ou duas crianças. Basta ? Claro que não !! mas é reação, e isto sim é importante. Não nos conformarmos, se isto vai mudar tudo rapidamente como seria ideal ? De novo, claro que não. Mas é o nosso lado ainda humano, gritanto: NÃO para a barbárie. Para mim é um bom começo. Pababéns por fazer parte da massa indignada.Um forte abraço.

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  4. Além de roubarem a infância, roubam também o direito à vida. A Sra. Eliane Rezende, assim podendo chamá-la, conseguiu colocar e expressar em palavras essa realidade que aparece em sombras. Ou melhor, por causa da ausência de luz aparece a escuridão, o nada, e é assim que está sendo extinta a nossa humanidade. Parabéns por encontrar belas palavras para expressar tão horríveis realidades.

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  5. Quando uma pessoa vem ao mundo sem as mínimas condições básicas para a vida, ela não vive, sobrevive.

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  6. Eliane, como vc eu e tantas pessoas sentem o mesmo... e quando se compartilha como você fez, nos agracia a alma sôfrega de algum consolo. Quem somos nós para nos dizermos sofredores perto dos pequenos que vemos lá e aqui passando por situações extremas, de guerras por extremismos à guerras entre gangues. Tanto faz qual gerra. É guerra. E qualquer uma retrata a ignorância, cegueira, miséria moral, indignidade.
    Um abraço.

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    Respostas
    1. Ol@ Yara...
      Obrigad@ pela solidariedade de prisma!
      É de fato muito triste ver tantas formas de guerras, vilanias e abandonos.
      Sempre que releio este post choro... é impossível não o fazer! Parece que nem fui eu a escrevê-lo: sinto sempre a mesma emoção e tristeza infinita ante a minha impotência!
      Abs
      ; )

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