Quando a ficção vem pra rua...

Por: Eliana Rezende

É assim mesmo que nos sentimos quando lutamos contra o fascismo, o obscurantismo?

Perdoem-me todos, mas nunca havia lutado contra um fascista de verdade. Em geral, achava que habitavam as ficções e os livros de história. Considerava que sua periculosidade era componente apenas de minha imaginação.

Posteriormente os conheci através de relatos de depoimentos colhidos na área de História Oral sobre os movimentos sociais ligados à Igreja Católica e que resistiam aos anos de chumbo no Brasil (o trabalho desenvolvido possui um acervo riquíssimo que pode ser consultado na CEDIC/PUC-SP).
As vozes ali ganhavam tons, entonação, lágrimas e sofrimento. Foram se desvendando para mim e fui descobrindo que a vida real os trazia em toda a sua truculência e perversidade contra os diferentes.
Eram perseguidos, presos, violados e violentados de todas as formas e maneiras, sob acusações vis e mentirosas. O seu principal crime? Não concordar com a Ditadura e a perda de direitos civis simples: como se reunir, pensar ou votar.
Descobri através dos relatos destes sobreviventes que torturadores são sempre covardes: escondem-se atras de armas, truculência, violência e turbas. Que motivos não precisam existir, basta apenas a diferença de pensamento, conduta, objetivos, opções. Não há espaço para o contraditório além da força e coerção.

Nos últimos dias, no entanto, todos eles saíram desta minha ficção e pesquisas históricas e os vejo povoar ruas, em conversas de botequim e com muito maior virulência e maior estupidez nas redes sociais. Nos inundam com um jorro imundo de xingamentos, preconceitos, abordagens rasas de análise conjunturais, equívocos imensos de história e cultura. Um caldo amalgamado do pior que a humanidade nos consegue oferecer, e para não falar da associação entre convicções e doutrinação pelo uso da fé de alguns. É o fundamentalismo que se agrega à ódios profundos, cegos e irracionais.

Pensava que a ficção sempre exagerava tipos sociais. Mas tenho visto que era ignorante sobre o tema: a realidade é mais crua, fétida, perversa.

Tenho me sentido estarrecida com o grau de brutalidade possível em pleno século XXI, quando as redes sociais parecem fuzis e canhões para canalizar o ódio e derramar mentiras, enganos, construir "verdades" e até supostos mitos.

Mas a História não é tão simples assim. Supostas 'verdades' podem ser pretensamente construídas hoje, mas serão completamente destruídas quando o Tempo por elas passar.

Mas como sempre, achamos que as bombas só caem nos vizinhos! É muito estranho de repente sabermos que estamos cercados: nosso vizinho, nosso colega de trabalho, nosso tio, até um ou outro amigo(a) ou o dono da padaria... 
O fascismo assusta exatamente porque parece ser contagiante!

Freud talvez explique melhor esta projeção no Outro de tudo o que existe de pior em nós. A perplexidade aqui é constatar que em verdade o mal não mora no Outro, mas dentro de cada um que o reconhece, amplifica, dissemina e distribui num ódio cego, irracional e preconceituoso. Assim, o que temos hoje é UM que amplifica os demônios que habitam em TODOS e o Outro é o humano a ser abatido quer por balas, quer por palavras, quer por vídeos falsos e baratos, por mentiras, truculência.

A perplexidade me avassala, pois esta violência é indistinta e distribuída democraticamente: encontramos pobres, ricos, endinheirados ou remediados, analfabetos ou diplomados, brancos, pretos, mulatos, todos com os pensamentos mais rasteiros possíveis sobre a diferença, a diversidade.

E constato que afinal: o mal habita o humano indistintamente.

Basta apenas alguém que o queira cultivar...

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